O governo britânico acaba de seguir os Estados Unidos e anunciar um pacote de ajuda ao sistema bancário do país. Os números são modestos em comparação aos US$ 700 bilhões aprovados pelo Congresso americano, mas os 50 bilhões de libras (US$ 88 bilhões) a serem gastos pela Grã-Bretanha mostram quão interligados estão Estado e mercado. Como dizem por aqui, esse não é um pacote para salvar os bancos, mas sim uma ação emergencial para salvar a economia. A discussão não é mais sobre manter a estabilidade ou entrar em recessão. As opções agora são uma recessão ou uma depressão.
A Islândia, com seus pouco mais de 300 mil habitantes, é o melhor exemplo de quão trágica a situação pode se tornar. Com uma economia que nos últimos 15 anos deu um salto impressionante, graças ao seu envolvimento com a onda fenomenal de crédito nos mercados no mundo todo, a pequena ilha gelada está à beira do precipício econômico. Avanços que deram aos islandeses uma das melhores qualidades de vida do mundo levaram a uma conta estratosférica que terá de ser paga. Europa e Estados Unidos querem evitar o mesmo destino.
O exemplo islandês reforça a idéia de como o Estado, nas nações que mais abraçaram o capitalismo neo-liberal, tornou-se intimamente conectado com o setor financeiro, com o mercado, com a iniciativa privada. Mas seria isso apenas uma relação de colaboração e interdependência? Ou estaríamos falando de uma verdadeira simbiose? Estaria o mercado hoje se tornando a base do Estado ou o próprio Estado? É o que sugere uma das teses mais discutidas em geo-política internacional nos últimos anos.
O americano Phillip Bobbitt, em sua impressionante obra A Guerra e a Paz na História Moderna (The Shield of Achilles - War, Peace and the Course of History), sugere que o Estado nacional, ou Estado-nação, nascido há cerca de 500 anos, está sendo substituído por uma nova entidade: o Estado-mercado. Basicamente, segundo Bobbitt, o Estado nacional tornou-se incapaz de prover a sociedade com aquilo que ela almeja e por isso está sendo passado para trás. No seu lugar, vem um Estado promotor da competição, do multiculturalismo, desprovido de valores morais rígidos. "No Estado-mercado, o Estado é responsável por maximizar as opções disponíveis aos indivíduos", diz Bobbitt. "No Estado-mercado, o mercado torna-se a arena econômica, substituindo a fábrica. No Estado-mercado, homens e mulheres são consumidores, não produtores." Para o autor, tal meritocracia sem bases morais consolidadas, estimulando uma competição extrema, seria o único modelo capaz de, diante dos avanços tecnológicos e das novas demandas da população, atender às expectativas da sociedade.
Esse seria um processo ainda em andamento. Mas Bobbitt, cujo livro foi publicado em 2002, já dizia: "Os Estados Unidos estão incrivelmente bem posicionados para se tornarem um Estado-mercado". Se tal simbiose já é um fato, nada mais natural que o Estado (seja nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha) faça de tudo para socorrer o mercado (bancos e aqueles que deles dependem). A morte de um levaria à falência do outro.
A tese de Bobbitt é muito mais complexa do que o descrito acima e envolve transformações políticas, culturias e sociais, além das econômicas. Mas pode-se dizer que o Brasil ainda está longe dessa realidade, e é questionável se precisaria abraçá-la algum dia. O presidente Lula, por exemplo, disse recentemente que a era da engenharia havia voltado, depois de décadas de domínio da economia. Ele quis dizer: mais obras de infra-estrutura e menos ciranda financeira. Se Estados Unidos e Grã-Bretanha já são Estados-mercado, eles enfrentam sua primeira crise de extrema gravidade, que testa a resistência desse novo modelo. Ou a resistência de outros modelos que ainda não se adaptaram à suposta nova ordem. Enquanto isso, o presidente do Banco Mundial já defende que o G7 incorpore as grandes economias emergentes, como o Brasil, o que sugere uma democratização do poder econômico inédita na história mundial. O Estado-mercado de Bobbit é um caminho, mas pode não ser o único.
Rogério Simões
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