SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S. Paulo, em Washington
Lee Siegel acha que não existe guerra cultural na atual corrida presidencial norte-americana. O conceito de cultura para republicanos e democratas é diferente, explica. Para os primeiros, representa questões do dia-a-dia, como educação, aborto, religião. Para os segundos, uma discussão abstrata sobre idéias e política.
O polêmico crítico cultural norte-americano é autor de "Against the Machine - Being Human in the Age of the Electronic Mob" (Contra a Máquina - Sendo Humano na Era da Turba Eletrônica, Spiegel & Grau, 2008), um libelo contra a internet e inovações tecnológicas em geral.
Em 2006, envolveu-se em uma confusão ao defender os próprios textos no fórum eletrônico de leitores da "New Republic" usando um pseudônimo. Desde o começo da corrida eleitoral, vem publicando em jornais e revistas alguns dos comentários mais originais sobre a disputa entre Barack Obama e John McCain. Na quinta-feira à noite, ele falou à Folha por telefone.
FOLHA - O sr. diz que essa é a primeira eleição presidencial pós-moderna. Por quê?
LEE SIEGEL - Barack Obama e John McCain continuam se apropriando das frases um do outro, por exemplo. O slogan de Obama no início era 'Sim, nós podemos'. Logo, o slogan da campanha de McCain virou 'Sim, nós iremos'. Eu vejo muita fluidez entre dois lados tão polarizados.
Um outro aspecto da eleição pós-moderna é viver por substituição, de forma indireta. Isso é um subproduto da internet. As pessoas não agüentam nenhum tipo de candidato em cuja experiência de vida eles não podem se enxergar.
Estamos vivendo numa cultura da primeira pessoa, na qual as pessoas parecem incapazes até de usar o pronome pessoal da terceira pessoa, como "ele" e "ela". Todo o mundo só usa "eu".
E eu acho que esses dois candidatos estão fazendo um esforço extra para abrigar todo tipo de experiência dos eleitores, de se abrir para essa vivência por substituição.
Como Obama fez em seu "infomercial" na quarta-feira passada, em que intercalou sua história literalmente na de quatro outros americanos, se tornando ele próprio a América. É extraordinário.
FOLHA - O sr. disse -parafraseio- que os eleitores colocam Obama num pedestal por medo ou desconforto e que McCain não se mostra superior a eles, porque ele tem uma experiência humilhante em seu passado, que é a tortura durante a guerra, e isso faz com que se pareça mais com eles. Por que Obama está liderando as pesquisas, então?
SIEGEL - Uma explicação simples: a economia. É a pior crise econômica desde a Depressão e está apenas começando. Se não fosse por isso e pelo fato de McCain não ter absolutamente nenhuma idéia original econômica, ele seria o próximo presidente dos EUA. Hoje, acho que Obama vencerá, mas não ficarei chocado se McCain virar o jogo.
FOLHA - Qual será o peso do fator raça na votação de terça?
SIEGEL - Essa é a grande variável. Uns dizem que vai roubar seis pontos percentuais de Obama, outros dizem que é besteira, que vivemos numa sociedade pós-racial, os americanos estão tão insatisfeitos com os últimos oito anos que até os racistas votarão dele. Simplesmente não sabemos.
Minha opinião é que o derretimento da economia tornou a questão racial inconseqüente. Não fosse isso, Obama não seria eleito. Os eleitores estão passando por cima do racismo por desespero econômico. Senão, votariam no mais familiar, o sujeito de rosto branco e cabelo branco.
Veja como, mesmo assim, McCain está grudado em Obama. Para um país que foi emasculado econômica e militarmente nos últimos oito anos pelos republicanos, é extraordinário que esse republicano obviamente tão desqualificado para ser presidente ainda dê tanto trabalho a Obama.
FOLHA - O sr. disse que a simpatia por pessoas que tornam possível que nos vejamos vivendo a vida delas explica o apelo de Sarah Palin, por exemplo. O líder tem de ser imperfeito para liderar?
SIEGEL - Sim, Obama passou os últimos meses assegurando que é humilde, que é imperfeito, tentando esconder sua arrogância natural, que era o que lhe causava mais problema no início. Já McCain chega às pessoas com uma imperfeição pré-fabricada.
Só a imagem desse homem sendo espancado sem dó no Vietnã -se foi isso mesmo que aconteceu, ninguém sabe na verdade- é uma humilhação muito grande. Para um homem tão poderoso como McCain, ter essa imagem de humilhação pairando sobre ele é um fator consolador numa democracia como a norte-americana.
O mesmo ocorre com Sarah Palin. O fato de ela ter uma família com tantos problemas, de parecer tão imperfeita, foi uma grande vantagem para ela. O problema é que foi mal gerenciada, fizeram de uma maneira que, em vez de parecer imperfeita, mas forte, passou a parecer rasa e corrompida.
FOLHA - Quando o Partido Republicano gasta US$ 150 mil de roupas com ela, então, está destruindo Sarah Palin?
SIEGEL - Isso, na verdade, é uma não-polêmica. A destruição veio mesmo quando eles a deixaram longe da imprensa e, quando a deixaram falar, fizeram-na decorar respostas, o que, no extremo, a levou a responder à pergunta de uma entrevistadora sobre quais jornais lia com 'terei de ver isso e responder depois'.
Claro que lê jornais, só estava apavorada por medo de dizer o que não estava aprovado pela campanha. Isso fez com que ela parecesse muito mais estúpida do que é -e ela não é estúpida. Não foram as roupas, mas fazer ela soar mais popular do que é, se tornar uma paródia de si mesma, que foi o problema.
FOLHA - Nesse sentido, qual é sua avaliação da entrada de Joe, o encanador, e Tito, o construtor, na cena política?
SIEGEL - A democracia nos EUA sempre foi aos trancos e barrancos, sempre dependeu de personagens estranhos. Não me lembro de alguém como Joe, o encanador, mas, para citar o YouTube, numa era em que tudo vai parar na internet e é comentado por 1 bilhão de pessoas, um evento real, como a interação do encanador com Obama sobre a política de impostos, vira um cartum e aí se torna algo deprimente por repetição. Joe, o encanador, deveria ser apenas Joe, o encanador, o protagonista de um evento real e natural.
FOLHA - O sr. escreveu que toda essa discussão sobre guerra cultural na verdade era uma não-discussão, já que para os republicanos o conceito de cultura é um, e para os democratas, outro. A crise econômica suplantou a discussão?
SIEGEL - Sim, mas vale retomar. Os republicanos se tornaram os mais hábeis em falar de questões com as quais as pessoas mais sofisticadas não se importam, que são religião, família, promiscuidade sexual, obscenidade, questões que fazem os progressistas suspirar de tédio, mas que são legítimas.
A crise econômica foi uma bênção para os democratas, pois essa é a linguagem que eles falam, a linguagem abstrata das idéias, discursos e políticas de governo. E, nesse momento, é o que preocupa as pessoas, para onde ir, o que vai ser feito, o que o governo vai fazer, qual vai ser a política econômica.
Os republicanos são muito ruins nesse assunto pelo simples motivo de que eles não acreditam no governo. Então não podem participar da conversa...
FOLHA - Então não foi o caso de, após 28 anos, os democratas terem superado os mestres e começado a falar a língua do povo, pois, nesse caso, segundo sua tese, eles não teriam escolhido Obama para ser candidato mesmo antes da crise, certo?
SIEGEL - Exato, em tempos normais a escolha teria sido um desastre. Ainda não estou seguro sobre se um Obama presidente não vai ser um desastre. Eu prefiro ele a McCain, é claro, mas não sei de verdade o que traz escondido nas mãos.
FOLHA - O mundo está fascinado por ele. O sr. não acha que, se for eleito, mudará a imagem que se tem dos EUA?
SIEGEL - Sim, até que Obama despeje sua primeira bomba sobre o Paquistão...
Então a imagem dos EUA voltará a ser a de sempre, a do valentão se movendo a cotoveladas pelo mundo.
Obama é mais falcão do que McCain, se mostrou mais agressivo em relação ao Paquistão, por exemplo. Pode dar um fim à Guerra do Iraque, mais vai ampliar a do Afeganistão.
FOLHA - Ao final da leitura de seu livro 'Contra a Máquina', o leitor fica com a impressão de que o sr. acha a invenção da internet um erro.
SIEGEL - É um desastre sem proporções. Está destruindo o jornalismo neste país, por exemplo. É uma estupidez que uma inovação tecnológica esteja comprometendo a qualidade do jornalismo, ao invés de melhorá-la. Não vejo nada novo ou original vindo dali.
FOLHA - Nada?
SIEGEL - Não. A Internet e tecnologia atingiram um ponto que estão sugando e secando todos os prazeres espontâneos da vida. Eu saí para comprar um CD player, não existe mais. Todos esses prazeres, os vinis, os cassetes, tudo se foi. O prazer a autonomia dos objetos, que refletem a sua autonomia como pessoa, tudo isso acabou. Nós não decidimos mais quem nós somos, Steve Jobs decide. E o Google decide. É uma vergonha absurda. Sinto muito que meu filho vai crescer num mundo em que ele não poderá ter a concretude de um livro, de um LP, tudo será virtual, miniaturizado, abstrato.
A Wikipedia, por exemplo. Não é nem o problema da acuidade dos verbetes, se é que há algum correto, mas o estilo em que são escritos. São pesados, não há espaço para sutileza, para ambigüidade. O pior de tudo é que as pessoas estão perdendo a paciência e a atenção. Eles não conseguem se concentrar. Se houver uma luta por hegemonia contra a China, não consigo deixar de pensar que a China sai com vantagem, porque é uma civilização muito antiga que cultivou os hábitos de paciência e atenção, que não existem mais nesse país.
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