Dentro da mente de um torturador

Natascha Kampusch, sequestrada aos 10 anos e mantida em um porão até os 18, lança livro no qual relata os horrores do longo cativeiro

É uma tarde gelada no fim de agosto, numa área não particularmente mozartiana de Viena. Natascha Kampusch está diante de mim no escritório do seu agente, e me estende a mão. À sua esquerda está o agente, Wolfgang Brunner, à direita seu tradutor, Jill Kreuer. Boca fechada, lábios apertados. Observo uma pequena mancha descolorida na pele da sua mão, resultado de uma ferida, provocada por uma surra que nunca sarou completamente.

Natascha durante entrevista sobre o lançamento de seu livro: pais divorciados, que antes do sequestro a espancavam e a insultava. Foto: Frank Bauer/The Guardian

Há 12 anos, quando tinha 10 anos, Natascha seguia para a escola (não era a primeira vez que sua mãe a deixava sair sozinha) quando percebeu um homem ao lado de uma perua de entregas. Parecia uma pessoa bem cuidada, conservadora. Ao passar por ele, foi agarrada e jogada para dentro do veículo.

Oito anos depois, em agosto de 2006, Natascha reapareceu milagrosamente, correndo aterrorizada pelas ruas de um subúrbio de Viena, pálida e magra, como uma criança de um conto dos Irmãos Grimm, fugindo das garras do monstro. Um público obcecado e assustado aguardava suas primeiras palavras. Que na verdade eram confusas e inquietantes e não tinham nada a ver com um conto de fadas.

"Choro por ele", ela disse, referindo-se ao seu sequestrador, Wolfgang Priklopil. A admiração transformou-se em indignação e confusão e ela começou a receber cartas de ódio. Assim, começou a escrever um livro de memórias, 3.096 Dias, explicando tudo. Trata-se de uma crônica intuitivamente brilhante dos seus anos de cativeiro.

Natascha tinha concordado em conversar comigo sobre o livro. Mas, ainda muito nervosa, seus lábios continuam colados. Olho ansiosamente para ela. Terei ido a Viena para me encontrar com uma pessoa psicologicamente incapaz de falar? Mas, para meu alivio, ela me diz: "Alô."

"Você tem dificuldade para falar a respeito?", pergunto. "É difícil", ela responde. "Então, por que aceitou?" Natascha diz: "Quero reivindicar minha interpretação dessa história."

Natascha nasceu num conjunto habitacional perto de Viena. "Estava acostumada a conviver com pessoas perturbadas", diz ela. "No meu bairro havia alcoólatras, pessoas com problemas mentais. Adoravam falar sobre teorias de conspiração. Pessoas fracassadas na vida."

Seus pais divorciados a espancavam e a insultavam. Aos 10 anos, era uma menina que comia compulsivamente, deprimida, só. Na verdade, nos seus últimos momentos de liberdade ela fantasiava um suicídio. Imaginava se atirando na frente de um carro e, depois, a mãe chorando.

Era o que estava sonhando acordada quando ia na direção do homem encostado na perua de entrega. "Como seus pais estão se sentindo com relação a esse livro?", é a minha pergunta. "Você é bastante honesta sobre a crueldade deles."

Uma pequena pausa. "Eles ainda não leram", diz ela. Mas, acrescenta que espera que o livro acabe com a impressão que as pessoas têm de que "minha mãe era uma pessoa brutal e passei um tempo melhor naquele calabouço". Por mais dura que fosse sua mãe, não se igualava a Priklopil.

Suas primeiras palavras para seu sequestrador quando se viu dentro do carro foram: "Que número de sapato você usa?", diz ela. "Qual era a sua idade, era casado, tinha filhos? Por que não tinha filhos?" Foi o que perguntei a ele." E por quê? "Sabia, porque no Aktenzeichen Xy...ungelost (programa de TV exibindo crimes reais ocorridos na Áustria) eles diziam que você precisa ter o máximo de informação possível sobre o criminoso." Ela sorri, lembrando da sua ingenuidade.

Primeiros dias. 

Ele a levou para sua casa, num bairro próspero da cidade chamado Strasshoff e colocou-a num minúsculo aposento no porão que, evidentemente, já vinha preparando havia um longo tempo. Ficava debaixo de um alçapão na garagem, a que se chegava descendo alguns degraus, passando por uma parede de concreto oca para o outro lado por uma pequena portinhola de metal, oculta detrás de um armário.

O local era tão secreto e fortificado que era preciso uma hora para chegar até ele. Um aposento de cinco metros por cinco, vazio, à prova de som, sem janelas e com o som irritante da vibração de um ventilador de plástico.

Ele mandou que ela tirasse sua mochila. Quando ela perguntou se poderia levá-la consigo, a resposta do homem foi alarmante: "Você pode ter um radiotransmissor escondido e usá-lo para pedir ajuda."

Uma alegação estranha e paranoica - crianças de 10 anos não costumam ter aparelhos de transmissão nas suas mochilas. Mas, diz ela, "estava acostumada com pessoas adultas fazendo e dizendo coisas estranhas que não entendia".

Ela pediu que ele a cobrisse, lesse uma história e lhe desse um beijo de boa-noite. E tudo isso ele fez alegremente.

No início, o relacionamento foi relativamente fácil. Ou, pelo menos tão fácil quando um está preso num calabouço e o outro tem de manter todo o local oculto do mundo exterior, incluindo a mãe e o melhor amigo, Ernst Holzapfel, que o visitavam regularmente. Ele levava para ela croissants e brinquedos caros, como um trenzinho completo. Como se fosse um mecanismo de defesa, ela regredia psicologicamente à idade de um bebê dependente.

Mas então as coisas começaram ficar estranhas. Os presentes se tornaram menos interessantes. "Ele começou a me trazer antissépticos bucais e fita adesiva", diz ela. "Mas eu ainda estava feliz em ganhar aqueles presentes. Ficava feliz sempre que ganhava algum presente, mesmo que fosse um suco de laranja."

Ele dizia que era um deus egípcio e ela decidiu que o mais fácil era aceitar o que ele dizia. "Às vezes quando ele me dava banho, eu me imaginava num spa. Quando me dava alguma coisa para comer, eu o imaginava um cavalheiro, que estava fazendo tudo aquilo para mim galantemente."

Nos anos de adolescência, submeter-se às vontade dele ficou mais difícil e ela começou a se rebelar. Por exemplo, recusava-se categoricamente a chamá-lo de "mestre".

"Achava aquilo ridículo e bobo", diz ela. "Mas esse era o comportamento que sempre tive desde a pré-escola. Por exemplo, um menino dizia "sou o presidente", ou "sou o rei". Eu respondia "ora, eu sou uma princesa e você tem de fazer tudo o que eu mandar". É uma espécie de megalomania."

Agora chegara então a vez de Priklopil adaptar-se à nova situação. Sua prisioneira não era mais tão dócil. Infelizmente, ele decidiu que a solução era desestruturá-la completamente para remodelá-la de novo.

"Ele queria mostrar cada vez mais que era mais forte do que eu, que eu tinha de obedecer sem questionar." E ele começou a espancá-la, constante e violentamente, negava-lhe comida e a mantinha no escuro por longos períodos. Instalou um interfone de modo que pudesse acordá-la no meio da noite, berrando insultos.

E ele era engenheiro na Siemens, daí suas habilidades técnicas.

"Quando comíamos juntos, ele sempre pegava uma porção muito maior", diz ela. "Estava consciente de que eu não tinha nenhum direito. Além disso, ele começou a me ver como uma pessoa que poderia fazer trabalhos pesados."

Ele começou a levá-la para o andar superior para limpar a casa. Ela tinha de fazer isso seminua, com o olhar abaixado. Só podia falar quando ele desse sua permissão, caso contrário apanhava. No livro, ela escreve que a única coisa sobre a qual não quer falar é sobre abusos sexuais, mas que estes eram insignificantes, e mesmo quando começou a algemá-la à sua cama, ele só queria ficar abraçado a ela. E ela diz que decidiu que sobreviveria por causa de um fato ocorrido quando tinha 12 anos.

Promessa. 

Como não havia adultos sadios, coerentes em sua existência, decidiu que se tornaria uma adulta. Numa visão vívida viu-se com 18 anos.

E disse à visão: "Prometo para você que vou sair daqui. Ainda sou muito pequena. Mas quando você fizer 18 anos, vai ter força para vencer o sequestrador e libertar-se desta prisão."

Os espancamentos continuaram nos seis anos seguintes. Às vezes, só conseguia evitá-los esmurrando o próprio rosto repetidamente, quase zombando, até que ele pedia que parasse.

Tentou o suicídio, cortando os pulsos com uma agulha de tricô aos 14 anos. No entanto, houve também momentos de ternura. Às vezes, ele pedia desculpas, comprava-lhe presentes, falava do seu sonho de ter uma vida com ela.

"Acho que ele realmente confiava em mim", afirma. "Comigo ele podia se comunicar, agir apesar da doença. Acho que queria criar seu pequeno mundo perfeito com uma pessoa que estaria lá somente para ele."

Ele a via como uma espécie de bela escrava ariana e uma companheira que o adorava. Contou-lhe que os judeus foram os responsáveis pelos atentados do 11 de Setembro, tingiu os cabelos dela de loiro e - depois de convencê-la de que qualquer tentativa de fuga significaria a morte para ela e para ele, e também para dezenas de outras pessoas - levou-a para esquiar. A jovem ariana esquiando ao seu lado numa montanha, "como se Leni Riefenstahl fosse a diretora do filme", ela ri.

Na realidade, ele saiu algumas vezes com ela, equivalentes a 13 dias ao todo, para a farmácia, uma loja de ferragens, mas principalmente para flats vazios para alugar que ele reformava para o seu amigo, Ernst Holzapfel. E a obrigava a fazer trabalho pesado. Ela estava apavorada demais para fugir, para falar qualquer coisa às pessoas que encontrava - como o farmacêutico, ou o policial que parou o carro em uma blitz.

Então, ela completou 18 anos. Nesse dia, olhou para ele e disse: "Você nos colocou numa situação da qual somente um poderá sair vivo. Eu realmente estou grata por você não me matar e por cuidar tão bem de mim. Foi muita bondade sua. Mas não pode me obrigar a ficar para sempre com você. Sou uma pessoa independente com necessidades próprias. Esta situação precisa acabar." Ela fechou os olhos esperando que a espancasse, mas não aconteceu nada.

Em vez disso, abriu os olhos e viu que ele tinha uma expressão triste, de derrota. "Acho que ele entendeu que eu tinha chegado ao fim das minhas forças, que tinha me levado àquele ponto extremo. Eu estava totalmente esgotada, mas de certo modo isso me deu forças renovadas. Ele não tinha mais nenhum argumento para contestar."

Momento decisivo. 

E então, poucas semanas mais tarde, ele a deixou sozinha no jardim por um momento, enquanto foi atender ao telefone, e ela simplesmente saiu pelo portão. Começou a correr, desesperadamente. Pediu às pessoas que passavam que a ajudassem, mas elas a ignoraram. Finalmente, encontrou alguém que se dispôs a chamar a polícia.

"Você acha que ele se resignou com a sua fuga?", pergunto. "É possível que ele previsse que isso iria acontecer", responde Natascha. "É possível que ele desejasse que isso acontecesse." Evidentemente, a situação deve ter ficado tremendamente difícil para ele com todo o estresse provocado por manter uma escrava secreta.

Priklopil foi falar com seu amigo Ernst Holzpfel. Ficaram rodando de carro por Viena durante três horas e ele confessou tudo. "Sou um sequestrador, um estuprador", contou. Então Holzapfel deixou-o sair do carro e Priklopil deitou-se nos trilhos da ferrovia até que um trem passou por cima de sua cabeça.

No início Natascha recebeu inúmeras ofertas de ajuda, algumas bem estranhas: "Você poderia morar comigo e me ajudar no trabalho da casa. Estou oferecendo casa, comida, salário. Embora seja casado, tenho a certeza de que podemos chegar a um acordo", disse uma destas pessoas.

Mas conta que as propostas pararam quando ela se recusou a fazer o papel da vítima - uma menina frágil precisando de ajuda - e tentou explicar aos entrevistadores as nuances da sua relação com o engenheiro.

Não era bem essa a história que as pessoas queriam ouvir, e assim acharam que ela sofria da Síndrome de Estocolmo - um rótulo, afirma, que pretendia negar-lhe sua capacidade de julgar sua própria experiência.

"Acho muito natural que alguém procure conhecer o seu sequestrador", ela diz. "Principalmente se você passa muito tempo com essa pessoa. É uma questão de empatia, de comunicação. Procurar a normalidade no quadro de um crime não é uma síndrome. É uma estratégia de sobrevivência." Ela para. "Mas as pessoas ficam entediadas quando falo isso. Algumas afirmam que eu deveria ser trancafiada de novo, que não há nada de especial no fato de ter sido trancada daquele jeito, que eu gostava daquilo, que aquilo foi bom para mim."

Natascha comprou a casa de Strasshof para impedir que se tornasse um santuário de fanáticos insanos. Acha a sua fama "entediante e incômoda".

"Sabia, quando estava no calabouço, que a história me tornaria famosa, mas pensava que seria uma experiência mais positiva, como ganhar a Olimpíada. Você está nas manchetes, as pessoas a admiram, e então acaba e fim. Nunca imaginei que encontraria tantas pessoas desagradavelmente curiosas que se recusam a manter distância de mim, pessoas sem educação. Também tive vários complexos, portanto ser uma pessoa conhecida só aumenta o incômodo."

"Que tipo de complexos?" pergunto. "Inseguranças. Por que as pessoas olham de maneira tão estranha para mim e me tratam de um modo tão curioso? Então me lembro: Ah, sim! As pessoas me reconhecem."

Inesperadamente, ela se torna a âncora de um programa de entrevistas na TV. "Sempre quis entrevistar pessoas", fala. "Quando estava no cativeiro, ouvia o rádio e admirava os entrevistadores." Para e sorri. "E com certeza aprendi a conversar com as pessoas. Fui obrigada a ouvi-lo, e acho que isso foi muito positivo, porque muitas pessoas da minha idade não conseguem apenas ficar ouvindo."

"Deve ter sido uma boa lição sobre a natureza humana", digo. "Então vai querer ser jornalista?", pergunto. "Psicóloga", responde. "Embora antes, meu desejo era aprender duas profissões: de ferreiro e de sapateiro."

"Tudo o que uma moça deseja na vida", diz seu agente do outro lado da mesa.

Pergunto se ela tem flashbacks. Encolhe os ombros. "Não esqueço de tudo isso, mas agora não é importante. Quero viver o momento. Mas às vezes, sim, tenho flashbacks."

Pergunto para ela: "O que traz estas lembranças para o presente?"

"Quando estou preocupada com uma situação em que alguém age de maneira semelhante. Como na minha vida privada. Vejo homens maltratando mulheres e agirem de modo possessivo com elas. Tenho flashbacks se as pessoas tentam me fazer comer quando não tenho fome. Na prisão, ele me tirava a comida, mas quando elas fazem o contrário, isto me tira a minha dignidade."

"Por acaso pergunta a estas pessoas por que estão agindo como o sequestrador?", eu pergunto. "Às vezes", responde. "Isso faz com que elas parem?" "Sim", responde ela sorrindo.

Obra. 

E agora vamos ao livro de memórias. Por acaso, tentar penetrar na mente dele a ajudou do ponto de vista psicológico? "Gosto muito de fazer isso", responde. "Na realidade, provavelmente gosto até demais, e é por isso que procurei um terapeuta. Gosto de me colocar no lugar das pessoas e procurar sentir o que elas sentem. Por exemplo, se estou apaixonada por alguém, penso constantemente: "Por que ele disse aquilo daquele modo? Ele queria dizer aquilo mesmo? O que aconteceu na sua infância? Por que ele agiu daquela maneira?""

"Evidentemente, no caso do seu sequestrador, você tenta penetrar em uma mente que está completamente confusa e desordenada", digo. "Mas ele confiava em mim. Era capaz de abrir-se comigo e mostrar-me suas ideias e visões, embora fossem visões e ideias doentias."

Para, e daí a pouco continua. "Não quero fazer psicologia de programa de entrevistas, mas acho que tudo isto aconteceu porque ele era conservador demais por fora, excessivamente conformado e conformista, e acho que foi por isso que cometeu o crime. Ele tinha algo como uma fronteira entre o que a sociedade permitia e os seus desejos pessoais, e foi incapaz de conciliar as duas coisas". E depois - cansada de falar sobre tudo aquilo - ela toca uma música do seu iPhone para o pessoal que está na sala e borrifa um pouco do seu novo perfume no ar.

Leia também:

Cronologia: Oito anos de cativeiro
Gilles Lapouge: Desejo de escravizar

Fontes: FRANK BAUER/THE GUARDIAN - O Estado de S.Paulo

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