Contra ilegais, Itália flerta com o fascismo

Leis que tornam crime imigração clandestina e discurso xenófobo expõem intolerância da sociedade italiana


Barco lotado de imigrantes ilegais chega à ilha de Lampedusa/Reuters

ROMA - Exatos 90 anos após Benito Mussolini lançar o Manifesto Fascista, a Itália está novamente diante do racismo. Com o objetivo de combater a imigração clandestina e a criminalidade, a Justiça italiana já está condenando os primeiros estrangeiros pelo recém-criado "crime de imigração". Por todo o país, exemplos de intolerância alimentam a polêmica sobre o governo de Silvio Berlusconi, mas também sobre a sociedade italiana, cada vez mais acusada de racismo.

A controvérsia sobre o que vem sendo chamado de "deriva fascista" na Itália surgiu há três semanas, quando um bote com cinco imigrantes eritreus foi resgatado na costa da Ilha de Lampedusa, no Mar Mediterrâneo - a principal rota usada por imigrantes ilegais da África para entrar na Europa. Para trás, o grupo havia deixado 73 mortos, vítimas de 20 dias de sede e fome à deriva em águas territoriais europeias. A tragédia transformou-se em debate nacional depois que os imigrantes relataram ter sido avistados por embarcações que lhes negaram socorro durante o trajeto, contrariando uma lei marítima histórica.

A polêmica cresceu depois que a Justiça de Florença condenou o primeiro estrangeiro à luz da nova lei de "imigração clandestina". Acusado de furtar uma bicicleta, Samer al-Shomaly, um palestino de 28 anos, foi condenado a pagar uma multa de 5 mil, pena sujeita à conversão em expulsão do país.

A condenação teve como base o Pacote de Segurança, aprovado pelo governo de coalizão de Silvio Berlusconi com o partido de extrema direita Liga Norte em 2 de julho. A legislação tornou-se símbolo do rigor da Itália em relação aos estrangeiros em situação irregular (leia quadro). O texto prevê, entre outras punições, a desapropriação de imóveis alugados a imigrantes ilegais e aumenta de 60 dias para 6 meses o tempo de detenção de clandestinos - palavra que virou sinônimo de "criminoso" no país .

A ofensiva contra os imigrantes desencadeou uma onda de críticas de intelectuais, organizações não-governamentais (ONGs), militantes dos direitos humanos, da Igreja e de políticos de oposição na Itália e na Europa. Laura Boldrini, alta comissária das Nações Unidas para os Refugiados, considera a lei abusiva. "Há na Itália um estímulo ao ódio que não pode ser aceito em uma sociedade democrática. É como jogar combustível no fogo", advertiu. "A opinião pública vem sendo alvo de uma campanha que confunde imigrantes com criminosos, ignorando que eles são importantes para a economia e para o bem-estar das famílias."

O diretor da Organização Internacional para a Imigração (OMI) para o Mediterrâneo, Peter Schapfer, tem posição semelhante: "A Itália não sabe lidar com o fenômeno da imigração porque o conheceu relativamente tarde. Há 10 ou 15 anos, ainda se considerava um país de emigrantes. Ainda não considero o conjunto da sociedade italiana racista, mas é verdade que grupos políticos e setores minoritários da sociedade têm um discurso racista, xenófobo e islamofóbico."

Foco das críticas, Roberto Maroni, ministro do Interior, vice-presidente do Conselho Italiano e líder da Liga Norte, argumenta que o Pacote de Segurança reduziu a imigração em 92% em um ano. Usando o discurso clássico de seu partido, que costuma responsabilizar os imigrantes pela violência, pela pobreza e até pela transmissão de doenças no país, Maroni sustenta que a criminalidade teria caído 14% desde a vigência das medidas: "A única resposta que continuo a dar é ligada à queda da imigração clandestina. Ano passado desembarcaram 14,2 mil clandestinos e neste ano, 1,3 mil."

Maroni diz que a criação do "delito de imigração" é uma "medida de proteção" da Itália contra os clandestinos. A Liga Norte, que tem 8% dos votos no Parlamento, teve uma página na rede de relacionamentos Facebook bloqueada há dez dias. Criado pela seção do partido da cidade de Mirano, no norte do país, o perfil tinha como slogan o lema "Torturar clandestinos é legítima defesa!".

Um dos mais de 400 "amigos" da página era Umberto Bossi, fundador da Liga Norte e ministro do governo Berlusconi. Ao ser cobrado pela imprensa italiana sobre o conteúdo racista do perfil, Bossi evocou o apoio popular às suas causas: "O pecado que a Liga porta é o voto."

Órgão para denúncias

Em 2008, uma lei proposta pelo Ministério do Interior da Itália passou a autorizar prefeitos a receber denúncias anônimas que levem à prisão de imigrantes clandestinos em todo o país. A"permissão" foi bem aproveitada por Leonardo Ambrogio Carioni, prefeito de Turate, na Lombardia, norte da Itália.

Desde o início do ano, um escritório abre as portas na cidade uma vez por semana para receber a "colaboração" popular contra estrangeiros que vivam sem documentos no país. O Escritório de Controle da Polícia Judiciária de Turate funciona na prefeitura, às quintas-feiras à tarde.

O objetivo é estimular "o cidadão a se tutelar", segundo argumentou Carioni ao Estado, por telefone. No dia em que a reportagem esteve na cidade, nenhum dos moradores apareceu para prestar queixa contra os estrangeiros da região, a maior parte marroquinos.

"Nossa administração adotou esse método para permitir à população evitar que clandestinos ponham em risco sua segurança", disse o prefeito, filiado à Liga Norte. Questionado sobre como encarava as críticas de racismo que sua administração vem recebendo, ele pediu para desligar e não atendeu mais a reportagem. Para Carioni, o novo órgão é um instrumento de combate à violência, não de perseguição de ilegais.

Entre os 9 mil habitantes de Turate, há cerca de 800 estrangeiros. Mas o número dos imigrantes em situação irregular é desconhecido.

Segundo funcionários da prefeitura, as delações normalmente são feitas por telefone e depois uma visita é programada. Entre os habitantes da região, as opiniões sobre o Escritório de Controle se dividem.

"Acho justo. Há muitos imigrantes que não trabalham, nem estudam. Eles não fazem nada", afirmou uma comerciante que não quis se identificar. "Os marroquinos causam problemas."

Para o aposentado Giancarlo Rimoldi, de 75 anos, a iniciativa do prefeito tem fundo eleitoral. "Sou apolítico, mas não é difícil perceber que ele está só levando adiante uma bandeira da Liga Norte", afirmou.

Contrário à medida, Rimoldi disse não ter nada contra os estrangeiros. "Não sou racista contra os que vêm de fora da União Europeia porque os problemas da Itália não têm nada a ver com eles", afirmou. Mas, em seguida, o aposentado revelou um preconceito mais antigo: "Sou racista em relação aos sulistas. O problema da Itália sempre foi e continua sendo o sul, sustentado por nós."

Governo italiano tenta bloquear principal rota de ilegais

São fascistas', diz a nigeriana Queen E., de 21 anos, que obteve status de refugiada/Andrei Netto/AE

A rota marítima mais utilizada pelos imigrantes africanos que se arriscam a atravessar o Mediterrâneo em botes para chegar à Europa está bloqueada. As águas que cercam a ilha siciliana de Lampedusa, a 130 quilômetros da Tunísia, vêm sendo vigiadas por embarcações militares da Itália, da Líbia e de Malta desde abril. O objetivo do cerco é impedir que estrangeiros sem documentos alcancem o território italiano, onde poderiam pedir asilo político. Em terra, o Ministério do Interior italiano faz mutirão para retirar os "clandestinos" da ilha.

O bloqueio da faixa de terra rochosa e desértica de 6 mil habitantes, conhecida pelos naufrágios envolvendo imigrantes, foi ordenado pelo premiê italiano, Silvio Berlusconi, após negociação com o ditador da Líbia, Muamar Kadafi. O acordo estabeleceu uma força-tarefa dos dois países para vigiar o Mediterrâneo e, em especial, as Ilhas Pelagie, ponto mais ao sul da Itália, próximo da África. A ação busca interromper o fluxo de imigração que, em 2008, trouxe à ilha 33 mil estrangeiros, dos 36 mil que alcançaram a Europa por barcos.

A medida foi tomada depois que um bote com 250 imigrantes a bordo afundou na região em abril. Desde então, os três países intensificaram os esforços para impedir a chegada de estrangeiros. Roma também ordenou a fiscalização de todos os meios de saída da ilha e esvaziou os dois centros de retenção de Lampedusa, expulsando os imigrantes de forma sumária ou transferindo-os para outros "núcleos de identificação" espalhados no país.

"As condições para desembarques de imigrantes estão bloqueadas pela Guarda Costeira. As rotas dos imigrantes foram alteradas para outros pontos da Itália e de Malta", explicou ao Estado Mauro Buccarello, assessor da Prefeitura de Lampedusa. "Do ponto de vista político, o bloqueio foi saudável, pois reduziu a pressão migratória sobre a ilha e voltou a aumentar o turismo. Mas, do ponto de vista humanitário, a tragédia continua, pois nada mudou na origem, e os embarques continuam ocorrendo na Líbia, no Egito e na Tunísia."

A prova de que botes superlotados de africanos continuam a atravessar o Mediterrâneo ocorreu no dia 21, quando uma embarcação com refugiados de guerra da Eritreia foi resgatada no mar de Lampedusa com apenas cinco pessoas vivas. Após 20 dias à deriva, sem combustível, água ou alimento, 73 pessoas morreram e tiveram seus corpos jogados ao mar.

À rede de TV italiana Sky, Titi Tazrar, uma das sobreviventes, contou ter assistido a cada uma das mortes. "Éramos 20 mulheres, algumas grávidas. Duas delas perderam os bebês antes de morrer", disse a jovem, internada num hospital.

Organizações internacionais e ONGs instaladas em Lampedusa lembram que estrangeiros que atravessam o Mediterrâneo em botes são entre 5% e 10% do total de clandestinos que chegam à Itália todo ano. Dentre eles, 75% solicitam asilo político, dos quais 50% são aceitos pelos tribunais de Justiça - uma prova de que seus pedidos de refúgio são procedentes do ponto de vista jurídico.

"São pessoas que procuram ajuda porque estão fugindo de guerras, de ditaduras, de violências de toda ordem. Se arriscam suas vidas é porque têm boas razões para isso", diz Laura Boldrini, comissária da ONU para os refugiados.

Enquanto o drama humano continua em alto-mar, os fins de semana de sol agora trazem turistas a Lampedusa. Maria Argento, argentina casada com um italiano e moradora do balneário há sete anos, vê contradições no comportamento da população. "Quando um bote chega cheio de imigrantes, todos os tratam bem. Dão-lhes banho, roupas limpas, água, comida. Fazem tudo, mas os mandam embora", conta. "Nem os chamam de imigrantes, mas de clandestinos, de uma forma preconceituosa."

Porto clandestino

Lampedusa, a ilha mais procurada por quem cruza o Mediterrâneo em botes rumo à Itália, é um deserto de estrangeiros. Mesmo tendo recebido cerca de 33 mil imigrantes africanos só em 2008 - 75% a mais do que no ano anterior -, é praticamente impossível localizar um que resida na ilha.

Por ordem do governo italiano, os 1.800 que chegaram a viver no centro de detenção da cidade foram removidos e estão espalhados pelo país, uma medida que tenta livrar a ilha turística do estigma de porto dos clandestinos. O Estado localizou dezenas de náufragos resgatados em Lampedusa vivendo na cidade de Foggia, na Itália continental, a mais de mil quilômetros do porto de chegada.

Entre os imigrantes, há originários da Nigéria, da Eritreia, de Gana, da Somália, de Burkina-Faso, da Costa do Marfim e até de Bangladesh, entre outros. Em comum, todos têm a passagem por portos da Líbia, de onde embarcaram após pagar, em média, US$ 1 mil aos traficantes que exploram a imigração ilegal na região.

Charity Akhabue é uma das sobreviventes da travessia. Nigeriana de 20 anos, embarcou em novembro para a Europa na cidade de Suara, na Líbia, com outros 71 imigrantes africanos. Cinco dias depois, quando o combustível estava acabando, ela foi resgatada pela Guarda Costeira italiana nas imediações de Lampedusa.

"Nos últimos três dias, não tínhamos mais comida nem água", recorda-se. Desde sua chegada à Itália, Charity passou pelo centro de detenção de Lampedusa e por um centro de acolhimento na Sicília. Hoje, vive em Foggia à espera de trabalho. "Graças a Deus, vou receber meus documentos de refugiada", afirmou.

Um de seus amigos é Samuel Oleike, nigeriano de 25 anos, outra testemunha do drama. Recém-formado em engenharia mecânica, falando inglês com poucas falhas, contou ter chegado à Itália vindo de Trípoli, em 5 de abril, em uma das últimas levas antes que a Guarda Costeira italiana passasse a enviar os barcos de volta para a África.

Oleike aguarda o julgamento de seu pedido de asilo político, cujas razões não aceita comentar. "Temos problemas na Nigéria. Se tiver de voltar, não sei o que farei", diz, em tom angustiado. "Gostaria de ficar, de fazer algo na minha área, a engenharia. Tudo o que eu quero é trabalhar. Aceito qualquer coisa."

A também nigeriana Queen E., de 21 anos, obteve o status de refugiada, mas nada sabe sobre seu destino. "Eu gosto da Itália, mas vou ficar onde me aceitarem. Por enquanto, tenho de ficar no ‘campo’ (centro de detenção), porque ninguém me dá emprego", desabafa. "Os italianos não gostam de ver negros no centro da cidade, pegando seus ônibus ou trabalhando. Eles são racistas."


Fontes: O ESTADO/Andrei Netto - Reuters

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