RAFAEL GARCIA
Folha de S.Paulo
O sistema que regula a duração das memórias no cérebro é o mesmo que pode deixar uma pessoa viciada se estiver funcionando mal, revelou um experimento. Num estudo que usou drogas para "apagar" e "reforçar" lembranças específicas em ratos, cientistas de Porto Alegre apontaram onde e como o sistema nervoso determina quais lembranças são importantes e devem perdurar.
O trabalho, realizado por um grupo da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), está na edição de hoje da prestigiosa revista "Science". O estudo mostra que um evento crucial ocorre numa região cerebral específica, cerca de 12 horas depois da aquisição da memória. É como se, nesse instante, o cérebro passasse a limpo a lembrança para determinar se ela deve ou não ser arquivada a longo prazo.
O processo, conforme mostraram os cientistas, ocorre na chamada área tegmental ventral. É a estrutura que se comunica com o resto do cérebro usando como mensageira a dopamina, uma molécula transmissora de impulsos nervosos. A mesma estrutura está ligada ao chamado sistema de recompensa, que o cérebro usa para associar memórias a sensações de prazer ou dor --daí a ligação com o problema do vício.
Liderado pelos neurobiólogos Martín Cammarota e Janine Rossato, o trabalho indica que a formação de memórias é um processo separado de seu arquivamento dentro da burocracia cerebral. Ratos que tomaram drogas para inibir a dopamina no período após as 12 horas conseguiam lembrar-se de um fato depois de um dia, mas a memória sumia no longo prazo.
"De alguma forma, o sistema dopaminérgico [neurônios que emitem dopamina] controla por quanto tempo a memória vai ser armazenada", diz Cammarota. "Nós mostramos que a área tegmental ventral se ativa preferencialmente após o aprendizado de memórias que vão persistir, não após o aprendizado de memórias curtas."
Por que isso ocorre 12 horas após o evento lembrado? "Não sabemos", afirma. "A "janela temporal" em que se pode agir parece ser curta, mas talvez não ela não seja a única. Pode ser que existam outros períodos de susceptibilidade nos quais a memória se faça novamente passível de ser modificada."
O trabalho publicado agora, dizem os pesquisadores, não tem implicações clínicas diretas para tratar de perda de memória e ou vício em drogas. Os fármacos usados no estudo são experimentais e podem oferecer riscos. Mas ele aponta a transmissão da dopamina e a área tegmental ventral como "alvos" para medicamentos.
Um viciado tem memórias tanto das sensações de prazer quanto dos problemas que uma droga pode provocar, explica Cammarota. O motivo de a primeira se sobrepor tanto sobre a segunda, porém, não é tão bem conhecido. Pode ser que as pessoas mais vulneráveis ao vício tenham algo de diferente no mecanismo nesse mecanismo.
O segredo para entender o vício pode estar na memória, diz.
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